O véio dançou
Apesar de não existir uma hierarquia fixa entre os direitos fundamentais, quando há conflito, a liberdade de expressão deve ser priorizada. Isso acontece porque é muito importante para a democracia e para o pluralismo político.
A 2ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu, no dia 30 de abril, que o empresário Luciano Hang não receberá indenização por conta de críticas feitas por um jornalista em um canal do YouTube. Hang é o dono da rede de lojas Havan e tinha pedido uma grana por danos morais.
Esse novo julgamento é uma mudança na linha do tribunal, que no ano passado havia determinado que o jornalista pagasse R$ 100 mil a Hang e retirasse o vídeo do ar. A treta começou quando Hang questionou as falas de Helder Maldonado, apresentador do programa "Galãs Feios".
Maldonado comentou uma reportagem do portal UOL. Essa matéria falava sobre um suposto relatório da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que mostrava irregularidades nas finanças de Hang, além de envolvimento em crimes como lavagem de dinheiro e agiotagem.
Hang afirmou que esse relatório nunca existiu e que o jornalista ultrapassou os limites da liberdade de expressão ao replicar essas informações, que ele considerou falsas e ofensivas. Por conta disso, ele pedia a retirada do vídeo do ar e a indenização.
O jornalista, por sua vez, defendeu que apenas comentou uma notícia já veiculada. Ele disse que as críticas eram legitimamente baseadas em informações que já circulavam na mídia.
Depois de ser condenado, Maldonado recorreu da decisão. Ele alegou que a justiça não o considerou um jornalista no exercício da sua profissão. Hang, por outro lado, ressaltou que ser jornalista não tirava a responsabilidade pelo que foi dito.
O desembargador João Marcos Buch, relator do caso, concordou que, no ano anterior, o tribunal não reconheceu o réu como jornalista. Ele defendeu que o trabalho de um jornalista é fundamental para a democracia. Isso porque ele leva informações ao público, além de críticas necessárias para trazer pluralidade de opiniões.
Enquanto influenciadores digitais não têm a mesma proteção legal dos jornalistas, os jornalistas são amparados por normas que garantem sigilo de fonte e responsabilização pela veracidade das informações. Na decisão de 2024, a menção a conteúdo jornalístico se referia à notícia do UOL, e não ao réu.
O relator achou que tirar o vídeo do ar era uma medida muito pesada. Isso porque essa ação limita bastante a liberdade de expressão. A solução ideal, segundo ele, poderia ser garantir o direito de resposta ao empresário, em vez de retirar o vídeo.
Em outro processo, Hang conseguiu um direito de resposta no UOL. Para o desembargador, essa foi uma solução válida, e tirar o vídeo do ar seria uma sanção exagerada para Maldonado e seu canal, que tem “apenas” entre 76 mil a 500 mil seguidores. Hang, em contraste, possui seis milhões no Instagram.
Buch lembrou um precedente do Supremo Tribunal Federal: um veículo de comunicação só pode ser responsabilizado se a acusação falsa não foi verificada e havia indícios de falsidade na denúncia. Ao publicar a reportagem, não havia provas concretas de que as afirmações eram falsas. Além disso, Maldonado se baseou no que o portal UOL divulgou.
Outros veículos tradicionais de informação também comentaram sobre a existência do relatório da Abin. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) também afirmou ter recebido essa documentação. Portanto, Maldonado estava discutindo a partir de textos jornalísticos de fontes respeitáveis.
Na opinião do desembargador, o empresário se envolveu em várias polêmicas ao longo dos anos. Assim, reproduzir tais acusações é um ato válido, atrelado a eventos ambientais ligados ao autor, mas sem intuito de caluniá-lo ou injuriá-lo.
A responsabilidade por eventuais danos morais, segundo Buch, deve recair nos criadores do conteúdo. Sendo assim, no caso de Maldonado, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa devem prevalecer, evitando censura.
Buch também ressaltou que Hang é uma pessoa pública, muito exposta, e tem um histórico de estar em evidência na mídia, participando de eventos políticos com figuras influentes, como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Quando o direito à honra de uma pessoa conhecida entra em conflito com o interesse público, a manifestação de pensamento prevalece sobre a proteção do interesse individual. Em outras palavras, pessoas públicas estão mais sujeitas a críticas devido à notoriedade.
Ele notou a intenção de Hang de intimidar o jornalista, que é apenas um “mero jornalista” em um canal do YouTube, e possui uma audiência bem menor em comparação com o poder econômico e a influência de Hang.
O desembargador ainda lembrou que Hang foi considerado inelegível por usar sua empresa e poder financeiro junto a fake news para tentar influenciar o eleitorado a não votar em partidos da esquerda.
Diferente das fake news, que são informações falsas divulgadas para enganar, a crítica feita no vídeo, mesmo que exagerada e humorística, não teve esse objetivo.
O caso mostra como a liberdade de expressão deve prevalecer, especialmente quando envolve questões de interesse público e pessoas públicas. Respeitar esse direito é essencial para o funcionamento saudável da democracia e do debate social.