Direito da Insolvência
Quando eu ainda estava na universidade, ouvi de um juiz bem respeitado em São Paulo uma frase que me marcou muito: "é preciso colocar o Direito na prática da vida, se não, ele não serve para nada". Essa ideia é essencial para entendermos como a legislação é aplicada no dia a dia.
Um exemplo disso é a alteração que foi feita na Lei de Falências, mais especificamente no artigo 10, parágrafo 10, por meio da Lei nº 14.112/2020. Essa mudança trata do prazo para que credores possam habilitar seus créditos em casos de falência. No meu artigo anterior, abordei um pouco sobre isso.
De acordo com o que diz o artigo 10, § 10, quem tem um crédito deve apresentar o pedido de habilitação em até três anos após a publicação da sentença de falência. Essa regra foi aprovada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e pelo Superior Tribunal de Justiça, consolidando a decadência dos pedidos feitos fora desse prazo.
Além dessa alteração, a Lei nº 14.112/2020 também trouxe uma novidade importante para os créditos fiscais. Agora, existe um novo procedimento chamado Incidente de Classificação do Crédito Público (ICCP), que está no artigo 7º-A da mesma Lei de Falências.
Agora surge uma dúvida: o prazo de três anos para habilitar créditos, conforme o artigo 10, § 10, também se aplica ao ICCP? Ou seja, a Fazenda Pública cara pra gente também teria que seguir essa regra?
Essa questão nos obriga a refletir sobre a aplicação do Direito na vida real. Às vezes, essa dúvida parece não ser muito relevante no começo, mas quando as questões forenses começam a surgir, ela pode se destacar.
A norma do artigo 10, § 10, foi criada para dar agilidade ao processo de falência. O principal objetivo é evitar que o processo se arraste por muito tempo, tornando a solução da crise muito mais cara. Assim, ao decretar falência, o credor passa a ter um prazo para agir, pois, se não o fizer, perde o direito de habilitar o crédito.
De acordo com Marcelo Barbosa Sacramone, a introdução dessa decadência está ligada à extinção das obrigações do devedor falido. O falido terá suas obrigações extintas em até três anos após a decretada falência.
Importante destacar que a decadência prevista no artigo 10, § 10, se refere apenas ao direito de habilitar o crédito na falência. Isso quer dizer que, se o prazo passar, o crédito não poderá mais ser cobrado da massa falida, mas ainda poderá ser cobrado de sócios ou outras pessoas que sejam responsáveis.
Em relação ao crédito tributário, a mais recente alteração na Lei 14.112/2020 permite que o juiz inicie, de ofício, o Incidente de Classificação de Créditos para cada uma das Fazendas Públicas credoras. Antes, essa iniciativa dependia apenas do órgão fazendário. Vale lembrar também que, conforme o artigo 187 do Código Tributário Nacional (CTN), a Fazenda não precisa habilitar seu crédito.
Essa mudança é significativa porque altera a forma de como os créditos tributários entram no processo de falência. Agora, essa inclusão tem um procedimento próprio, diferente dos outros credores.
Há uma diferença importante entre o tratamento dado aos créditos tributários e o de outros credores. Para as Fazendas Públicas, o artigo 7º-A estabelece que o ICCP é instaurado automaticamente pelo juiz. Já os outros credores precisam seguir as regras dos artigos 9º e 10 da Lei 11.101/2005.
Dentro dessa nova abordagem para os créditos fiscais, não faria sentido aplicar o prazo de decadência do artigo 10, § 10, da Lei 11.101/2005, que se aplica aos demais credores. O prazo decadencial é uma especificidade que vale para as habilitações de crédito das outras categorias.
Em comentários a essa situação, Maria Rita Rebello Pinho Dias e Fernando Antonio Maia da Cunha explicam que a decadência não impede que uma pessoa cobre o que lhe é devido. Na verdade, ela implica na perda do direito de entrar com uma ação para habilitar o crédito.
Isso mostra que, ao perder o direito de participar do processo de falência, o credor não consegue entrar com a sua demanda. Essa é uma razão que reforça a ideia de que essa regra não deve ser aplicada às Fazendas Públicas, tanto pela prevalência do ICCP quanto pela falta de necessidade de habilitação, como já mencionado.
Chamando a atenção para o entendimento do Código Tributário Nacional (CTN), que é uma lei considerada de status semelhante ao de uma lei complementar, destaca-se que a possibilidade de cobrança do crédito tributário em caso de falência deve ser regida por leis complementares.
Ainda que a Lei nº 11.101/2005 seja posterior, ela não pode anular o que está disposto no CTN, já que este possui uma hierarquia superior e precisa ser respeitado.
Habilitação Retardatária
É possível que ainda surjam dúvidas sobre a decadência, principalmente por conta do artigo 7º-A. Segundo isso, o ICCP é estendido às Fazendas credoras, ou seja, aquelas que estão no edital previsto no § 1º do artigo 99 da Lei de Falências.
Se a Fazenda Pública não se manifestar dentro do prazo estabelecido, ela deverá seguir o procedimento normal de habilitação já previsto na legislação. Isso significa que, se o juiz não tiver informações em um prazo específico, o incidente será arquivado, embora exista a possibilidade de pedido de desarquivamento posteriormente.
Nesse caso, o juiz abrirá um incidente de classificação de crédito público para cada Fazenda e, caso nenhuma pública se manifeste, será feito o arquivamento. Então, se uma Fazenda quiser apresentar algum crédito depois, deverá solicitar o desarquivamento e seguir os procedimentos de habilitação de crédito retardatário.
Embora esse procedimento pareça razoável, ele pode ser desafiador, especialmente quando se considera o CTN. Por isso, alguns especialistas, como Marcelo Sacramone, afirmam que a Fazenda Pública não deve se sujeitar à decadência.
Na verdade, a cobrança de créditos tributários não estava prevista na Lei nº 11.101/2005 e, conforme o CTN, a Fazenda não precisa se submeter ao concurso de credores ou habilitação em casos de falência ou recuperação judicial.
A legislação anterior não foi considerada adequadamente na alteração da Lei nº 11.101/2005, e, por isso, a suspensão das execuções fiscais até o término da falência pode ser vista como uma interferência na lei complementar, que é considerada inconstitucional.
Com isso, se a Fazenda não precisa entrar no concurso falimentar para garantir o recebimento do crédito, não há motivo para tratá-la da mesma forma que os demais credores. Isso significa que, mesmo que a Fazenda não atue no prazo determinado, ela não sofrerá as consequências da decadência previstas para outros credores.
A rigor, esse tratamento diferenciado e os procedimentos separados para créditos fiscais mostram que a Fazenda Pública não deve ser obrigada a seguir o prazo de decadência que se aplica aos demais credores da falência.